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CRÍTICA: Rio, Zona Norte (1957) - Nelson Pereira dos Santos

  • Foto do escritor: Vítor Azevedo
    Vítor Azevedo
  • 29 de jul. de 2020
  • 6 min de leitura

Atualizado: 7 de ago. de 2020

“Eu acho que é um dos filmes mais tristes que eu conheço" é, provavelmente, uma frase que já foi expressa por diferentes pessoas a respeito de Rio, Zona Norte. Todavia, curiosamente, ela também foi dita pelo próprio diretor da obra. Nenhuma autopromoção, na verdade, uma confissão. O que se torna ainda mais explícito quando, em seguida, na mesma entrevista, ele conta ter "se redimido" dessa grande tristeza que ele mesmo concebeu, fazendo um filme homenagem ao sambista que inspirou sua obra — o curta Meu Cumpadre Zé Keti.

Diante disso, a frase de Nelson acaba por escancarar o que já estava escancarado: há um melodrama cruelíssimo por aqui, capaz, até mesmo, de ocasionar remorso em seu criador. Entretanto, suas palavras ocultam o mais interessante. Sua crueldade não é uniforme, ela possui diferentes texturas e dimensões, um melodrama pungente que dispara pra diversos lados a fim de conquistar esta melancolia central, mesmo que, talvez, o melhor estivesse em um único disparo.



Grande parte das motivações do filme poderiam ser explicadas através daquela velha história, sobre o melhor romancista do mundo, possivelmente, viver numa região desconhecida de um continente pouco falado, com escritos que jamais irão à público. Contudo, com Nelson, a hipótese é revista. Não é necessário olhar para os confins do mundo para se achar a tal injustiça, assim como no seu filme anterior, ela sempre é encontrada a poucos quilômetros de nós, nesse mesmo Rio de Janeiro disforme. É como a cena em que Espírito ouve sua canção roubada no rádio, nela, sequer precisamos avançar e observar sua conclusão trágica, tudo já está no plano que se estende com Adelaide incomodada com a festança, em primeiro plano, de costas para a cantoria ao fundo. A música tornada coadjuvante de seus impedimentos.

Aliás, se o diretor concorda com essa hipótese do gênio desconhecido, ele não a toma a fim de se concentrar na tal arte injustiçada, mas nos porquês que a relegam ao anonimato. Por isso, não poderia ser mais absurdo os sites que (nessa obsessão sistémica de achar que todos filmes podem ser catalogados em gêneros) nomeiam a obra como um musical. É justamente o contrário: sobre bloquear a abertura poética de sua música, através da imagem, a fim de se preocupar com os obstáculos que rodeiam o sambista. Ou seja, uma grande rima com toda essa proposta estética crua herdada do neorrealismo. Em suma, um filme extremamente materialista, ligado àquilo que surge de forma bruta, negando possíveis abstrações em prol dessa crueza transformada em crueldade.

Daí, esse inacabamento só atinge suas maiores forças quando seu diretor se prende a mais genuína de suas simplicidades: o homem e o natural prosseguimento de sua história. É a tal desprotagonização da música que sempre elenca um rosto para substituir as melodias e por mais que, majoritariamente, isto ocorra com o próprio sambista, talvez, esse contínuo ato da câmera, possa ser visto mais explicitamente na primeira aparição de Ângela Maria. A cantora que, interpretando a si mesma, surge numa comoção que se transporta da realidade para o universo fílmico, com todo o deslumbramento que se faz a sua volta. Comoção vista apenas pelos olhos de Espírito e que, mesmo assim, não ocorre por sermos colocados em posição similar a do personagem, ocorre, simplesmente, por seu rosto ser aquilo que toma conta da cobertura de cena. Ângela Maria só interessa de instrumento, um trampolim para Grande Otelo expulsar os sentimentos de Espírito da Luz Soares para o mundo de aparências, enquanto Nelson Pereira os captura, centralizando o Rio de Janeiro num primeiro plano.

É uma crueza simplista extremamente bem-vinda, pois, nos momentos mais banais, de puro acompanhamento cotidiano, que a potência de Grande Otelo estoura na imagem. São os seus sorrisos ingênuos, seus olhares cabisbaixos, ou mesmo, sem precisar procurar seus gestos explícitos, o seu espreguiçar. Ali mesmo, no seu acordar sem camisa ou, no momento seguinte, em que faz gracejos ao bebê de sua amada, ainda com espuma no rosto, que reside o coração do drama e do tema, o sambista injustiçado que sonha com seu terreninho pronto pulsando, mais vivo do que nunca. Um procedimento que recusa complexidades, pelo contrário, é uma absoluta simplificação da encenação, mas que só precisa da espontaneidade das movimentações de Otelo aliada ao registro íntimo de seu corpo desnudo para alcançar os píncaros da experiência.


A música de Espírito como pano de fundo de seus problemas
A crueza íntima da visão, a espontaneidade potente dos gestos

Até aí, poderia se dizer que, apesar de um mesmo “cinema de rua”, a mise-en-scène de Rio, Zona Norte é a antítese do que se fez em Rio, 40 Graus. Ora, se no filme anterior existia uma grande diversidade de rostos e paisagens, uma descentralização intensa daquela geografia a fim de conquistar o macro dos diferentes cosmos de sua cidade, aqui, só há o uno, o semblante de Espírito como síntese de seu universo. Entretanto, curiosamente, ambos filmes não são tão antitéticos assim: eles possuem grande similaridade ao seu falar dos seus empecilhos. Nos dois casos há um apelo estrutural problemático.

Na verdade, em Rio, 40 Graus seria mais justo chamar o tal “problema” de “morosidade”, pois, o que se vê, é mais uma espécie de entrave que tarda um pouco o processo de conquista. Isso é, lá, existe uma necessidade de um intercambiamento complexo de personagens, uma estrutura que têm como finalidade falar (ou mostrar) as heterogeneidades de sua geografia, mas que antes de poder cortar da morte para o futebol, do samba para o luto, decide adentrar num jogo de contiguidades, em que um personagem precisa esbarrar em outro para a câmera trocar sua atenção. Disso, o tal jogo complexo de ramificações de núcleos não é apenas um incremento, mas uma necessidade arraigada ao filme. A única trilha que seu diretor entreviu para poder culminar nos contrastes finais.

Já, no filme de Espírito, essa necessidade de uma complexificação estrutural (que, nesse caso, é falsa), apesar de também residir na camada mais primária do filme — com sua bifurcação de passado/presente, sendo o “presente” complemento desse mesmo paralelismo medíocre —, realmente pode ser chamada de problemática. Uma mesma motivação de incremento, de um artifício adicional para o núcleo dramático com fim de corroborar à potência total, porém, ao desconfiar de sua simplicidade centralizadora, a obra, só acaba por desembocar em redundância e precariedade. Ora, são os únicos momentos que se trai suas próprias imagens cruas, quando se alarga suas transições, fazendo os rostos encararem a câmera durante a fusão de planos, num efeito tão explícito quanto barato. Intercala um rumo natural da tragédia com uma espalhafatosa insistência de seu fatalismo. Um paralelismo forçado que, infelizmente, me faz lembrar que o belo espreguiçamento de Otelo é precedido por um exagero da fusão ou, pior ainda, que as últimas imagens que vemos do sambista pertencem àquele olhar toscamente manipulativo: o falso acordar antes da morte.


Fusão espalhafatosa

E, sobre a última cena relatada, tenho que admitir que ela não concerne totalmente a este jogo explanado. Por mais que ela resulte do mesmo fatalismo contínuo do “tempo presente” (que é pura engrenagem do paralelismo), a cena só acontece quando suas alternâncias já cessaram, na colisão temporal.

Assim, há que se constatar que Nelson não apenas concebe diferentes tipos de exageros como, também, diferentes tipos (ou tentativas) desse drama pungente, advindo da estética crua. Mesmo em toda a potência dramática de se acompanhar cada passo do ator, creio que há um pequeno quê de exploração nessa relação de negação da obra do artista. Não por puramente rejeitar qualquer tipo de exaltação da arte injustiçada, pois não há problema algum em negligenciar o objeto artístico na história do artista — Tarkovsky, por exemplo, em Andrei Rublev, jamais mostra seu protagonista pintando ao longo das 3h de filme —, ou mesmo extingui-la totalmente de sua visão. Entretanto, especificamente aqui, essa contínua escolha de sempre torná-la coadjuvante em prol do sofrimento do artista, em alguns poucos momentos, me soa como uma outra espécie de demasia dessa crueldade pretendida.

Claro, essa relação crua, como foi dito, é o auge da encenação de Nelson, mas, em última análise, essa negligência da música, por vezes, é substituída por uma escavação que comprova como a crueza deste Rio é menor do que a do Rio anterior. Quando o sambista canta para Ângela Maria, apesar da cena também ser sobre a fragilidade do futuro e sobre aquele fio de esperança renascido no artista, é muito mais sobre contemplar a nova música de Espírito tendo consciência da tragédia dos bastidores. Sobre como sua criação está estritamente relacionada ao assassinato de seu filho — o mesmo ocorre com a cantoria que antecede sua queda do trem. Ou seja, há uma demasia dramática que não ocorre pela rejeição ou pelo materialismo matriz, mas por começar a escutar a música com uma surdez tendenciosamente espalhafatosa, tentando ouvir uma outra coisa, que em nada tem a ver com a melodia. Mais uma vez: a tal crueldade.

Ao final, Rio, Zona Norte toma decisões que, por vezes, anuviam o sorriso cru de Grande Otelo. Todavia, ainda assim, ele possui uma exímia potência: o sorriso cru de Grande Otelo.




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