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CRÍTICA: A Negra de... (1966) - Ousmane Sembenè

  • Foto do escritor: Vítor Azevedo
    Vítor Azevedo
  • 7 de out. de 2020
  • 4 min de leitura

Atualizado: 14 de out. de 2020

Mesmo com uma mise en scène muito simples, ou melhor, justamente por ela, La Noire de... realiza seu legítimo protesto ao mesmo tempo que encontra um dos âmagos da narrativa cinematográfica.


É muito curioso, tudo parte de um esquema facilmente identificável e realizável. Uma câmera que se porta com proposital timidez diante dos seus seres, conseguindo ladear seu mundo visível tanto quanto um olhar qualquer de um cidadão entre a multidão. Um início em que toda observação é longínqua. Quadros em que a câmera tem que se esgueirar para vislumbrar um funcionário do porto, quadros em que civis estranham o cinegrafista e às vezes olham diretamente pra câmera, quadros em que sua protagonista se dispersa no meio de outros passageiros. Contudo, de repente, um primeiro plano frontal irrompe imponente e a narração daquele grande rosto feminino começa professar sua intimidade à tela.

A Negra de... (1966)

Certamente, um contraste nada sutil para protagonizar a tal personagem que se diluía pela paisagem, mas que, mesmo assim, só poderia ser chamado de rude ou de literal com muita ingenuidade. Afinal, é justamente através dessa honestidade das intenções que, indiretamente, torna-se explícito a vontade em comum de certos artistas do cinematógrafo: nada mais do que encontrar a potente possibilidade de conectar o "eu" e o "outro".

Algo que parece estar muito vinculado ao modo que Ousmane Sembanè lida com esse status de “primeiro longa-metragem” de sua carreira, ou seja, apenas filmando sem curvas o que se quer, executando um jogo formal que adapte imediatamente o discurso desejado para a experiência. Basicamente, parte de uma espessura do dia a dia, duma visão que remonta o externo e, em seguida, passa imediatamente para o que há de mais íntimo, mais pessoal e menos tangível.

Claro, nesses momentos de observação "impessoal", também se aproveita da energia banal para criar uma revolta incubada — nos mostrando a visão asquerosa daquela imagem imóvel e integral em que reside o racismo diluído no cotidiano burguês, atingindo os píncaros com o visitante que pede para beijar Diouana por nunca ter beijado uma negra antes —, ou ainda, para apresentar com certa sobriedade, nos seus lapsos temporais, a vida da protagonista em Dakar. Entretanto, isto é mero adorno, o coração de sua articulação formal não está interessado em deixar a máscara africana desprotagonizada, para que só o espectador atento perceba que o presente de Diouana para seus patrões foi posto de souvenir. Não. Logo após o plano que a moça entra no apartamento, o que vemos é o plano detalhe da máscara. O filme despudoradamente quebra qualquer chance de sutileza para poder manifestar, diretamente, um outro universo enclausurado nas imagens anteriores. Não basta sugerir um universo íntimo, é necessário que ele seja incorporado na tal experiência fílmica.

A Negra de... (1966)

Por isso, não creio que os melhores momentos do filme estejam nas imagens mais trágicas. Se, ao final, o contraste imagético, dos burgueses na praia interpostos com a notícia do suicídio da jovem negra, força uma ruptura naquele mundo imóvel e alienado, elucidando a tragédia que lá reside — a mesma ruptura que desmentirá as intenções do francês que volta ao Senegal pensando em resolver tudo com dinheiro —, para mim, os verdadeiros momentos dilacerantes são outros. Aqueles que se cumprem pelos meios básicos de sua própria arte, quando desafiam nosso “ver” ou “ouvir”. A Diouana mecânica em suas ações domésticas, essencialmente enclausurada, só podendo se expressar pela narração de cinema, só revelando seu verdadeiro “eu” nessa polarização dos sentidos. Uma decorrência de cenas domésticas aparentemente banais, repetitivas em suas ações, mas que se ressignificam pelo mais simples dos gestos estilísticos.

Daí, não posso deixar de pensar num paralelo com o recente Roma de Cuarón. Filmes de temática similaríssima, porém, antípodas por excelência. O que não acontece apenas pelo contraste de elementos formais. Na verdade, ambos são filmes que, pelos seus próprios meios, querem atingir essa experiência cinematográfica particular para suas histórias. Todavia, se Cuarón faz isso com os modos mais extravagantes possíveis, tentando interpor a cada movimento, a cada quadro, uma fotografia super expressiva, que só poderia ocorrer numa “imagem de cinema”, esta não parece a intenção mor do senegalês, que não faz suas escolhas formais pensando em simplicidade ou sofisticação: ele escolhe as formas que comportem a manifestação necessária para seu discurso. Claro, não existem formas mais corretas do que outras, no entanto, quando o autor mexicano coloca a sua vontade de “ser cinema” (o que poderia facilmente ser entendido como a vontade pedante de “ser artístico”) à frente da narrativa de cunho social, ele não percebe que seus motivos já são outros, que a plasticidade venceu há muito e que o discurso social só pode ser mantido com certa dissimulação ou ignorância frente ao seu próprio projeto. Do contrário, com o senegalês, atinge-se esse “ser cinema” do modo mais simples possível, primeiro se é honesto com suas próprias intenções e, depois, conquista-se naturalmente a particularidade de sua arte.

A vontade rude de transformar sua empregada numa "imagem artística" - Roma (2018)

É que Ousmane Sembanè descobriu que, no audiovisual, não precisa de muito para se concretizar a tal mise en scène, em cima do que se quer dizer. Só é preciso ouvir o que não se ouve e ver o que não se vê. Uma narração para a confidência e um plano aberto para o silenciamento.

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