CRÍTICA: A Ladra (1949) - Otto Preminger
- Vítor Azevedo
- 26 de set. de 2020
- 4 min de leitura
Assimilação direta dos atos, ou melhor, dos gestos, é uma ótima frase pra começar a expressar o que se passa em Whirlpool. Em suma, uma ponte que sintetiza os maiores extremos da obra. Todavia, a "direiteza" a que se alude é muito menos sobre uma inteligibilidade imediata do drama do que sobre sua manifestação imediata.
Talvez, o adjetivo "transparente" que Serguine cravou aqui — e que se replica em críticas, até hoje — seja exatamente sobre isso. Um filme que expulsa tudo que é falso, que caminha veementemente atrás da verdade, no seu sentido mais utópico mesmo. Imagens que manifestam tudo que há pra se manifestar sobre os seres humanos que foram impressos em sua película.

Daí, inicialmente, é tudo sobre um fluxo de expressividade da câmera. O filme que transforma esse modus operandi do Preminger — seus planos de movimentações intricadas, que faz mil firulas e continua a soar naturalíssimo, conduzindo seus atores ao mesmo tempo que se é conduzido por eles —, num pequeno exagero, gerando um sedutor didatismo sobre seu próprio processo. Ou seja, o personagem de José Ferrer com sua trama de hipnose que, basicamente, é o símbolo perfeito desse ser humano que modula o espaço apenas com o próprio temperamento. E, sobre ele, mais do que a cena inicial que já comprovaria esse personagem que contorce a situação ao seu bel-prazer, temos, essencialmente, o plano das cortinas fechando. A sequência da Gene Tierney em transe e da imagem que Preminger parece ter extrapolado, executando um travelling até desfocar as coisas e — pasmém — sem seguir qualquer movimentação de sua dança cênica costumeira. Mas é muito mais do que isso, o travelling que desfoca Ferrer, num primeiríssimo plano, é, justamente, o símbolo máximo desse exagero em prol do delicioso didatismo. O homem que moldou o mundo apenas com o poder de suas palavras.
Todo um drama trip encantador que me faz admirar a câmera de Preminger por cada milímetro de espaço que ela escolhe eliminar/encobrir. A câmera que está anos-luz de ser formulaica, de "apenas acompanhar o personagem". A câmera que escolhe a justíssima cobertura, a fim de alumiar, imediatamente, todos os segredos dos semblantes dos corpos em movimento. A câmera de cálculo perfeito e que, mesmo assim, é extremamente arriscada. A câmera de expressão fluída extraordinária, mas que sempre atenta a nos dar um segundo de imagem borrada, desfocada, de corpos quase roçando em sua lente em prol da manifestação verdadeira.

Um deleite quase anestésico, mas que, ao final, acaba desembocando em algo mais intricado. Aliás, não é apenas sobre a montanha russa dramática. Não. Se é sobre a transparência, a assimilação direta dos gestos, então é, até mesmo, sobre assimilar o nada.
E, sobre esse “nada”, dá pra dizer que ele reside na sequência dorsal do filme — o roubo noturno de Tierney que é chave para a mudança radical de tom —, numa confecção de plena contemplação dos gestos. Um enigma por si só. Afinal, se a sequência é demasiadamente sutil e alongada para considera-la como um drama que funciona por presciência do espectador (sobre saber que aquilo é uma alienação maléfica), o mesmo pode ser dito sobre considera-la como simples descrição de um evento crucial. Além do mais, justamente por ser isso, uma grande sequência descritiva, que parece difícil determinar que seja apenas isso. Uma descrição que se arrasta, fascinada em ver o nada inscrito no rosto de Tierney, de expressão tão extraordinária quanto críptica.
Basicamente, uma sequência alienígena que já estabelecia seus indícios através da dualidade Ferrer-Tierney. O mestre e a marionete. O demagogo e o manequim. Aquele que molda o mundo e aquela que é moldada (mas continua a se mover). Quem expressa a direiteza dos sentimentos e quem expressa a direiteza do enigma.
É bizarro, complexo, enigmático e tudo o mais. Uma mudança de curso que vai fazer o filme se agarrar de vez nesse gosto pelo "vero", pois todo o resto da obra se baseia em contemplar o tour de force dos seus personagens detetives, tentando expulsar tudo que é falso a fim de encontrar a verdade de seu mundo. Jornada que já conhecemos, que não é nem um pouco difícil de acertar seu rumo, sem reviravoltas. Imagens que sempre contaram tudo para o espectador, eliminaram qualquer senso de mentira que pudesse flutuar por seus cenários. Mas que, mesmo assim, faz com que o turbilhão dramático retorne sem empecilhos, numa fluidez, talvez, até maior do que a de seus momentos anteriores.

Novamente, é bizarro, complexo, enigmático e tudo o mais, porque, a partir daí, desse filme unicamente preocupado em expulsar o falso e achar as linhas da verdade, mil reflexões e descobertas se irrompem.
Me lembra Bunny Lake Is Missing. Um filme que nunca mentiu pra você, mas pela pura potência de seu extraordinário cálculo de equilíbrio, isso é, pelo puro poder de manifestação imediata dos gestos (toda a soturnidade e explosão em torno do desaparecimento que o diretor cria) ele o faz duvidar daquilo que é mostrado. Te faz pensar se não contemplamos a fantasia e o delírio em tela, mesmo jamais tendo minimamente atentado contra o concreto. Te impele a questionar a sanidade da protagonista numa obra que persegue seus gestos cândidos incessantemente — na verdade, uma dúvida que, talvez, surja justamente por isso: presenciar o drama manifestado com tamanha eficácia.
Me lembra meu erro, de simplificar Preminger como o lado oposto da “dicotomia da bomba sob a mesa” de Hitchcock. Aliás, se, em Laura, a verdade é descoberta através de um conta-gotas — num alinhamento com os olhos do protagonista, só conseguindo saber mais sobre o mistério quando o personagem o escava, tendo sofrer todo caminho árduo de descobrimento —, aqui, ela surge quase que por inteira. A resolução é decifrável antes mesmo do mistério ser instaurado e, mesmo assim, sugerir um "previsível" como adjetivo para Whirlpool continua a soar como insanidade. Afinal, inegavelmente, há um turbilhão dramático que jamais cessa em toda sua metragem.
E então, o que é a cena de roubo noturno de Gene Tierney, finalmente? Uma expressão imediata de uma ação antidramática. Ou seja, um mistério. Ou seja, eu não faço ideia...
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