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CRÍTICA: Rio, 40 Graus (1955) - Nelson Pereira dos Santos

  • Foto do escritor: Vítor Azevedo
    Vítor Azevedo
  • 29 de jul. de 2020
  • 4 min de leitura

Atualizado: 10 de set. de 2020

Engraçado deparar-me com Rio, 40 Graus e perceber que a despeito de toda a aura que o ronda, por ser um símbolo moderno — afinal, é o filme que melhor precede a “nova onda” que chegaria no Brasil — sua força motriz é justamente uma motivação clássica. A câmera que precisa se agarrar aos semblantes, achar o lugar e hora do drama, para, aí sim, poder mover qualquer história.

Claro, esse “drama” em muito se desvincula de exemplares clássicos, pelo seu simples gosto pela refração oposta a centralização máxima, mas, mesmo assim, Nelson acaba por nomear o drama como protagonista, ou melhor, como necessidade. Existe quase que uma regra para a narrativa andar. Primeiro, precisamos conhecer minimamente um rosto e seus motivos, para que, depois, este mesmo ser compartilhe espaço concreto com o próximo indivíduo que a câmera se aterá. Toda uma estrutura complexa que, de semblante em semblante, sai da dona de casa do Morro do Cabuçu e, por fim, encontra o ricaço mineiro recém chegado de avião.


A necessidade de contiguidade entre diferentes núcleos

E, juntando a este complexo jogo dramatúrgico, outros estranhamentos, como toda a trivial composição de cena — dos usuais kuleshovs à composição arbitrária dos planos, como quando se chuta uma bola para o gol — e a artificialíssima maquete do Rio de Janeiro que encerra o filme, é normal que urja a pergunta “ONDE ESTÁ O REALISMO DO TAL NOVO CINEMA?”.


Ora, está onde sempre esteve a essência de todo filme, na soma das forças de cada plano filmado, afinal, a abertura para o mundo, realizada pelo olhar de cada diretor, não se concretiza por planos, mas pela energia que reside em cada um deles. A mise-en-scène nunca foi uma questão de linguagem, mas uma questão de ontologia.

Acredito que Cottafavi, renomado diretor italiano, exprimiu em entrevista uma importante síntese ao nos dizer: “descobriu-se a beleza das coisas inacabadas. Michelangelo deixou-nos esboços que possuem um poder expressivo extraordinário. Isto corresponde um pouco à descoberta do neo-realismo”. Pois, de todo o Zeitgeist de ânsia realista em torno às décadas de 40 e 50 (Bazin, Rohmer, Zavattini, Kracauer etc), o que melhor explica a tal revolução que se alastrou pelo mundo, contaminando até mesmo irrealistas como Buñuel, é essa descoberta sobre a beleza do inacabamento.

Logo, é através dessa luz descontrolada, que invade os quadros, que sombreia e estoura indiscriminadamente, dos cenários teimosos, que não conseguem dar a vista exata que se quer para o enquadramento, do kuleshov barato que salta de um animal a outro no zoológico ou de qualquer outro processo que se expõe e se orgulha de ser rústico que o filme de Nelson quer angariar seu “realismo”. Claro, é um adjetivo autoimposto extremamente pretensioso, porém, além de seus mitos— o que é uma outra história — isso não significa que o filme não acabe por deflagrar uma nova experiência, uma nova vista que nos obriga a conhece-lo tateando suas diferentes texturas.


Rio de Janeiro como papel de parede

Se ponho a obra em tais termos é porque, primeiramente, vejo importância em desassocia-lo de seu microcosmos brasileiro, abrindo portas para o esperanto de “ser cinema”. Por isso mesmo, nessa mesma tônica, preciso denotar que Nelson está bem longe de ser um Rosselini brasileiro. O que não significa que a obra seja menos potente, pelo contrário, ela é um grande exemplar dessa efervescência rústica, mas, por outro lado, vejo toda esta complexidade dramatúrgica, roteirística, que descrevi anteriormente, muito mais como um vício do que como uma proeza.

É inegável que mesmo em toda essa ramificação de “rosto por rosto” do filme exista toda essa energia bruta inauguradora — está lá na lagartixa do garoto e seu passeio pelas imperfeições da continuidade ou mesmo na apresentação da garota que vai a feira e mostra a cidade abaixo do morro como seu papel de parede —, mas tudo alcança um auge no “pós”, isso é, quando tudo já está estabelecido, todos rostos nomeados e catalogados, daí que se atinge o choque de encontros dessas forças de inacabamento e, por isso mesmo, esse jogo dramático inicial, por mais laborioso que seja, me soa apenas como um empecilho autoimposto para se chegar até o auge de sua força moderna.

A força de quando finalmente se conquista a tal “vista panorâmica do Rio de Janeiro” e daí pode se revelar toda a densidade e multiformidade daquele terreno, porque seu autor nunca o reduz a qualquer dualidade, por mais que agonize sobre o racismo, a pobreza e a injustiça. Afinal, a potência reside na condição de cidade que passa de um grito de vitória no estádio para o garoto atropelado, da câmera que levanta do samba celebrativo para a mãe ignorante de seu luto, ou seja, dos diferentes cosmos de um ponto geográfico a outro, ou melhor ainda, dos diferentes cosmos num mesmo ponto geográfico.

É um ótimo exemplar brasileiro de todos esses fluídos descobertos pelo seu tempo, que certamente estão numa dimensão além da decupagem, do travelling, ou seja lá o que for. Entretanto, a despeito de sua idiossincrasia, unicidade e importância, ainda vejo certos degraus a sua frente antes de poder chama-lo de sublime.




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