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CRÍTICA: Ninguém Sabe que Estou Aqui (2020) - Gaspar Antillo

  • Foto do escritor: Vítor Azevedo
    Vítor Azevedo
  • 9 de set. de 2020
  • 5 min de leitura

Esterilização é uma ótima palavra para começar a denominar o que, logo de cara, irrompe de Nadie Sabe que Estoy Aqui. E, se começo com tal adjetivo é porque o filme-de-festival-da-Netflix já inicia exterminando qualquer nuance de distância no cinema.

Qual distância do cinema? Ora, a do olhar perante seu mundo e seus personagens. Entretanto, não falo daquele olho da câmera que muda de um plano pra outro. Não. É um olho mais insistente e que, de forma cínica (e um tanto quanto errônea), poderia ser explicado como a média aritmética do olhar que se escolheu para cada plano ou, de forma mais certeira, como o olho orquestrador. Aquele olho que não surge após calcular os planos prontos, mas, sim, antes de qualquer plano ser confeccionado. Uma distância resultada de uma relação difícil, encontrada nas implicações de um questionamento tácito entre o diretor e a câmera: como enquadrar a beleza e a feiura?

Bem, o que quero dizer é que a distância parte de uma complicação sobre como a imagem cinematográfica manifestará seu drama. O que, óbvio, não é o único caminho possível para se fazer um filme. Inúmeros nomes do cinema negaram, pasteurizaram, absolveram, potencializaram... a tal complicação (ou o próprio drama em si). O problema aqui é que essa “complicação” é puramente falsa. Uma realização preguiçosa que finge habitar nas necessidades de um drama intimista, mas se escora nas trucagens estilísticas de seu diretor. Aliás, quando Gaspar Antillo decide filmar somente a nuca, somente em contraluz, somente a natureza ou qualquer outra escolha que eclipsa seu protagonista através de uma “beleza” superficial — tudo como "manifestação" da solidão do ex-cantor —, a régua do diretor já parece muito bem definida: ele encontrou uma muleta tão extravagante quanto confortável (leia-se anestesiante) para o espectador.

O cálculo (Fúria, 1936)
A indolência (Ninguém Sabe que Estou Aqui, 2020)

É uma constante de assimilar a beleza e a feiura (ver um através do outro) da forma mais fácil possível. Pensemos no momento de mutilação do início do filme. A princípio, uma elipse bem usual, oculta a violência através de um contraste pacífico — aqui, troca-se o momento em que os dedos são decepados por pássaros voando —, uma elipse tão reutilizada que poderia até ser chamada de genérica em certo nível, mas que, na verdade, é súmula do que se faz em outros mil momentos. Porquanto, quando substitui-se a imagem do rosto de Memo abandonando o Tio pela sua subjetiva em grande angular ou quando sua desolação é expressa por uma cachoeira ou quando sua angústia se transforma no onírico vômito de glíter, o que se faz é justamente isso, oculta-se a feiura e usa-se a "beleza" como efeito instantâneo para o espectador. Assim como o susto e a informação de que dedos foram cortados são trespassados numa solução imagética imediata, a busca pelo belo dentro da vida desse homem — uma vida que seu mundo não cansa em sugerir que é horrorosa — é mediada por intervenções estilísticas que tornam esse processo igualmente instantâneo. Basicamente, Antillo fabrica um drama como se fizesse miojo, pois é tudo sobre “expressar o íntimo” de modo fácil e bonitinho. Um sentimento que se dá em um segundo, na junção da imagem agradável com o contexto triste.

E, por favor, não acredite que a miríade de imagens que substituem o rosto de Jorge Garcia estão lá pela ânsia suprema de anonimato, de virar de vez um ser espectral ou qualquer desculpa do tipo. Alguém é responsável por tais decisões. O mesmo alguém que decidiu tornar explícito como a obesidade do personagem é seu estigma e, apesar de sua insistente busca por beleza, nunca consegue devolve-la para o próprio personagem. Não. Ela está na floresta, nas luzes vermelhas, na composição certinha, na fantasia... enfim, em qualquer lugar externo que não seja o próprio ser humano. Logo, na tentativa de se aproximar do drama de uma persona marginalizada, a primeira atitude de Antillo é justamente eclipsa-lo, esconde-lo atrás da purpurina estilística.

(Ninguém Sabe que Estou Aqui, 2020)

Certamente, Nadie Sabe que Estoy Aqui, abre brechas suficientes para se dissertar sobre esse "gênero" que o filme considera um trunfo: o pseudodrama higienizado, todavia, a obra consegue fracassar até mesmo nessa primeiríssima decisão infeliz. Caracterizar sua experiência acaba por ser um exercício panorâmico, olhar por cima, sem se prender a só um aspecto ou outro, pois todos tem pouca profundidade e jamais se conectam uns com os outros. É sobre avistar seus diversos desvios e perceber que seu "centro" é justamente essa completa incoerência que não consegue, nem nos seus próprios erros, formar alguma integralidade. Aliás, como citei, nem mesmo essa distância indolente segue uma unidade. Ela se faz pela natureza, pelo sonho, pela contraluz, pela rejeição ao rosto, etc. Ou seja, um filme todo desmontado, atirando pra todo lado a fim de achar esse sentimento barato.

Daí, surpreendentemente, além dessa expressão dramática inócua, a própria progressão narrativa consegue me soar ainda mais incômoda.

Longe de estar reclamando do clichê pelo clichê, do Deus Ex Machina pelo Deus Ex Machina, da conveniência pela conveniência. O que importa é a imagem dada, sempre. Entretanto, é bizarro como todo o arco do protagonista acaba involuntariamente deflagrando seu esqueleto, justamente, por não conseguir escamoteá-lo, nem mesmo com a purpurina barata dos enquadramentos simétricos e das cores ordenadinhas. Ademais, se não há unidade nem no drama confeccionado pela frieza dessa intervenção estilística, só resta prestar atenção em cada ponta solta de cada imagem desmantelada.

É sobre como todas as cenas parecem sempre servir de subterfúgio para algo futuro. O hábito do protagonista invadir casas que só é utilizado como contorno narrativo, a primeira vez que o homem canta vira um dispositivo para reviravoltas futuras ou mesmo seu próprio relacionamento com Marta que, em certo ponto, é debandado de tal maneira que parece só ter servido como parte desse mero avanço narrativo pro retorno do passado do homem. E mesmo neste último caso, em que o filme toma uma metamorfose brusca de tom — devido a um vídeo viral que evoca seus conflitos passados —, se há algum impacto com essa mudança abrupta (uma tentativa de se assemelhar ao poder imediato do mundo digital?), ela é porcamente utilizada.

Como disse, tudo parece ser subterfúgio de outros momentos, nada se torna íntegro, nem a tal transição da trama. Logo, até a construção do casal que fora debandada, sempre retorna inesperadamente, tornando explícito como há uma história fora de tela, ou melhor, como há uma fratura na história, seja em tela ou em qualquer outro lugar. Toda uma dificuldade absurda de se construir uma cadência para o drama, já que ele sempre interrompe a continuidade de qualquer arco dramático para costurar outros arcos descontínuos (o do reencontro, de seu pai ou da aparição pública). Uma série de imagens-muleta que, servindo umas às outras, acabam servindo para nada: sem finalidade própria e sem força conjunta.

É triste. Nadie Sabe que Estoy Aqui escolhe como centro um péssimo projeto de estilização vazia e, ainda assim, é incapaz de realiza-lo. Acaba, até mesmo, soando errado mencionar a distância de um drama quando ele sequer possui continuidade. Afinal, imagens ocas + ritmo em frangalhos = a incompetência dramática por excelência.


(Ninguém Sabe que Estou Aqui, 2020)

 
 
 

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