top of page

CRÍTICA: Irreversível (2002) - Gaspar Noé.

  • Gabriel Zügel Zeidan
  • 8 de ago. de 2020
  • 5 min de leitura

Meu primeiro contato com “Irreversível” foi ao escutar inúmeras discussões sobre a polêmica cena de estupro presente no filme. Algumas pessoas acusavam Gaspar Noé de glorificar este crime hediondo, outras o defendiam por expor este ato terrível de maneira crua, e que apesar de aterrador, era relevante. Ao finalmente assistir ao filme, conclui o que eu já esperava, que é o quão reducionista é limitar esta obra apenas a esta cena.


Este debate ser o presente com mais constância em relação à obra, atesta o que eu já havia percebido há algum tempo, que é a compulsão do cinéfilo contemporâneo em buscar qualquer significância social em um filme. Há décadas, a sétima arte já vem sendo utilizada como meio de expor críticas e posicionamentos sociais e políticos, e apesar de isto ser válido e até bem-vindo, como tudo, pode ser abusado de tal maneira que se torne formulaico.


Há uma demanda tão esmagadora por parte do público, que agora um filme se posicionar em determinado assunto sócio-político tornou-se requisito para ganhar alguma premiação. Obras que defendem causas populares se tornaram um próximo filme de super-herói. Porém, apesar disso tudo, o verdadeiro perigo se encontra quando as pessoas ignoram a linguagem cinematográfica, e se atentam única e exclusivamente para pautas que consideram relevantes. Que acaba sendo o caso até mesmo desta obra em questão.


Apesar de que as mesmas pessoas que limitam “Irreversível” a apenas uma discussão social serem, em grande maioria, as mesmas que amam “Roma” por seu comentário progressista, a obra de Gaspar Noé está longe de ser um “cinema bibelô.” Esta possui uma mise-en-scène que está longe de ser vazia, e apesar de ela deixar aberta a possibilidade de uma discussão social, é insano que eu não veja muitas pessoas comentando a excepcional construção cosmológica do cineasta, independente se de maneira positiva ou negativa.


A obra de Noé já se inicia, que cronologicamente seria o final, no ápice de sua mise-en-scène. A boate rectum é o maior antro de iniquidade, onde atos sexuais são cometidos de maneira depravada, e a decupagem vertiginosa adotada, em que a câmera se movimenta de maneira anárquica e imprevisível, constrói um verdadeiro quebra-cabeça nauseabundo, com relances de felação, masturbação e sadomasoquismo.


Após este primeiro bloco temporal, a decupagem da obra se torna mais palatável em um sentido sensorial, pois é possível ao menos discernir os acontecimentos. Mas é interessante refletir sobre o motivo deste momento ser tão diferente dos seguintes (ou neste caso, anteriores?). A obra se inicia no ápice emocional das personagens, quando todos os acontecimentos funestos já assombraram a noite parisiense, e a câmera é a maior reflexão disto, que apesar de os espectadores não saberem, esta já estava assombrada e desnorteada por todo um passado assombroso.


Mesmo possuindo esta decupagem mais contida, a câmera do cineasta ainda estava sempre alerta às sujeiras metropolitanas, sendo estas do antro violento ou sexual, ou ambos. O que quero dizer é que, mesmo que a roupagem seja diferente, a essência ainda se mantém. Há momentos tensos como o embate com o taxista e a violência contra a travesti, que contribuem para um amontoado de ações reversas, que culminam na justificativa do ápice que expliquei anteriormente. Torna-se um universo em que mostrar a genitália é uma forma de se defender contra uma agressão.


Já pavimentada esta intencional depravação imagética, finalmente me atento à cena que motivou tantos debates: o longo plano da violência sexual acometida no túnel vermelho. Não há de maneira alguma exacerbação por parte do cineasta na maneira como ele captura este momento. É o ápice da violência gráfica, porém, é apenas uma extensão da cosmologia do filme, que apesar de não se tratar do ápice em relação à mise-en-scène, é o fator que ocasionou tudo. Indubitavelmente é um plano sobre a violência, não sobre a vítima, tampouco sobre o agressor, se trata deste ato selvagem, criminoso, e também constante.





Pensando neste sentido, consigo até ver motivos para Noé optar por fazer seu filme ter esta linha temporal inversa. O primeiro seria por uma perspectiva mais poética, na qual se faz um paralelo com o próprio título: as ações que não podem ser desfeitas, as marcas que para sempre serão carregadas, “o tempo destrói tudo”, as vidas que podem ser arruinadas em uma noite. Acredito que isto faz genuinamente parte da intenção, mas também vejo de outra forma, uma até mais simplista: para gerar impacto.


O interessante é que quando Gaspar Noé é apelativo, não se trata da violência e da sexualidade exposta em muitos momentos do filme, mas quando ele tenta mostrar o lado bonito da vida para dar mais peso ao que ele havia construído. Quando são apresentados os ocorridos anteriores ao estupro, somos introduzidos a vida normal de Alex, que até certo ponto é tratada de maneira sóbria, a empatia pela vítima surge de maneira natural (mesmo porque a própria cena já o faz). Foi quando a suposta gravidez fora anunciada, que fez a mão do autor pesar de maneira incômoda na obra.


Porém, não incômoda da maneira como Noé esperava. Não foi um momento de construção da personagem, de exibir sua vida prévia, e sim um momento com o intuito de simplesmente gerar impacto. Para fazer o espectador lembrar-se do longo plano que havia presenciado e perceber que ela estava grávida enquanto a violência ocorria. Foi um artifício manipulativo dos mais baratos, quando a própria mise-en-scène já estava fazendo um ótimo trabalho em gerar empatia para com a protagonista.


Com exceção da gravidez, há um momento que me atrai muito sobre esta cena do casal descontraído, que é a nudez. Pode soar estranho, mas há algo de muito interessante que a nudez pode contar sobre este filme. Até este instante, o corpo humano e o sexo estava sendo utilizado como uma arma de dor, um objeto masoquista, e a mise-en-scène demonstrava o lado selvagem deste estado humano, com exceção deste momento. O corpo nu exposto de Alex e Marcus é genuinamente um elemento de prazer para ambos, onde não há vergonha, apenas a beleza do corpo humano e a companhia de ambos. É a diferença entre um filme que, anteriormente, era “Hellraiser”, menos as correntes e os cenobites, para Adão e Eva. A transformação do Racumin para o vinho.





A nudez descontraída.


Apesar dos meus pesares em relação ao ato manipulativo de Gaspar Noé, “Irreversível” ainda é um filme que se sustenta de maneira grandiosa em suas imagens. Toda a agressividade e o animalesco humano são retratados através dos atos sexuais explícitos, que apesar de nauseabundos transmitem, por si só, sensações poderosas, mesmo que estas sejam negativas. Se o cineasta tivesse confiado em suas próprias imagens, sem tentar deixar sua marca de “malvadão”, a obra seria ainda melhor do que já é.

Comments


Post: Blog2_Post

Subscribe Form

Thanks for submitting!

©2020 por Cine 98. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page