top of page

CRÍTICA: Retrato de um Assassino (1986) - John McNaughton

  • Foto do escritor: Vítor Azevedo
    Vítor Azevedo
  • 7 de ago. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 14 de ago. de 2020

As várias abjeções



Lá em 1967, Arthur Penn sintetizava um novo prazer que começava a despontar nas telas dos cinemas estadunidenses. Lá no filme do famoso casal de criminosos, que já fora adaptado anteriormente pro cinema, mas, definitivamente, não daquela forma. Era o prazer do tiro e do sangue, ambos expostos simultaneamente e repetidamente. Não à toa que a cena mais famosa do filme é o slow motion de um tiroteio. Nada mais do que um alargamento dessa nova apreciação.

Henry: Portrait of a Serial Killer também possui uma câmera lenta, somente uma, mas, certamente, uma muito mais abjeta do que a de Penn. O que acontece não apenas pelo conteúdo mais agressivo, pois o curioso por aqui é como esse procedimento não é usado num estado puro, num alargamento direto da exposição, na verdade, é sobre como ele se aproveita da consciência do uso da câmera lenta. Um vídeo dentro do filme -- que o autor faz absoluta questão que você saiba que é uma imagem de seus personagens e não dele --, mas que, mesmo assim, só existe para que se amplie a tal exploração. Logo, mais do que alargar a abjeção, presenciamos o assassino que escolhe esse alargamento.

Assim, o slow motion de Mcnaughton ser, definitivamente, mais sujo do que o de Penn expõe bastante sobre o filme em si. Ora, é sobre as diversas acepções que se pode dar a este "sujo", todas as vias que a imagem cinematográfica pode trilhar para atingir este adjetivo, seja no conteúdo mais agressivo, na qualidade inferior da imagem, etc. Afinal, se já existia um "submundo exploitation", bem anterior à Bonnie e Clyde, o longa de 86 possui essas duas heranças: tanto um filme de baixo orçamento que quer se sujar, quanto um filme de um novo momento que pode assumir a tal sujeira.


Bonnie e Clyde - Uma Rajada de Balas (1967)
Retrato de um Assassino (1986)

A partir disso, diria que o filme lida com essa sujeira exponencial através de duas configurações distintas. Num primeiro momento é sobre a reinvenção, num segundo e majoritário é sobre a inconsequência.

Inicia-se com intervenções estilísticas como motor da experiência, mostrando o que não se consegue mostrar (devido ao seu orçamento) através de inventividades. Ou seja, sobre como o filme inaugura com um zoom out sob um cadáver apenas para negligenciar o assassinato em si. Mais do que isso: as vítimas são reveladas pela câmera que rodeia o cenário até achar um corpo, o crime é "presenciado" por flashbacks sonoros e o serial killer apresentado por pura sugestão da montagem.

Uma primeira condição extremamente dúbia. Um filme entre o explícito e o implícito, entre a sugestão e o gráfico e que, por isso, precisa se contorcer a fim de alcançar algo. Necessita da ginástica da câmera que, num mesmo plano, passa do desenho animado à revelação do cadáver para, aparentemente, suprir uma imagem que não conseguiria ser realizada de outra forma.


Uma imagem feita para suprir o assassinato que não se vê

Na verdade, uma amarra auto-imposta, pois, quando o paradigma é quebrado e, finalmente, vemos um assassinato in loco -- passando bruscamente de uma configuração de imagens à outra que pode até nos impelir a chamar a artificialidade da cena, dos pescoços sendo quebrados, de "tosca" --, ocorre um choque apenas para que percebamos o desavergonhamento diametralmente oposto ao que se tinha. Um tom de liberdade que mostra os melhores modos de se alcançar a tal sujeira.

Aliás, nessa própria destoação que se descobre a desnecessidade da ginástica que se fazia até então. Quando o filme transfigura a jornada de seu assassino nos momentos mais tresloucados -- indo de uma televisão como arma do crime até parar um carro aleatório para matar seu motorista -- que ele encontra sua sabedoria patológica. É a frase exemplificadora do protagonista, sobre nunca matar uma vítima da mesma maneira, que expõe a melhor metodologia para a câmera seguir: a inconsequência desconexa de seus eventos. Sequências que não necessitam de qualquer complexidade estética, necessitam apenas se testar inadvertidamente, percorrendo os caminhos mais absurdos possíveis. Afinal, o melhor momento de zooms e movimentações não está nos repetidos cadáveres apresentados, mas no diálogo mórbido durante um simples jogo de cartas.

Daí, poderia haver um estranhamento ao se dar conta que a metalinguagem que mencionei anteriormente, na verdade, pertence a essa simplificação dos procedimentos. Aliás, quando que o surgimento da própria arte, na arte em questão, não causa um rebuliço discursivo?

Bem, acontece que o filme em questão possui tantas similaridades com um Peeping Tom -- provavelmente, o filme mais famoso do assassino filmando seus crimes --, quanto possui diferenças. Melhor ainda: é como se o filme inglês antecipasse toda as décadas que estavam por vir no cinema. Ademais, se podemos dizer que Peeping Tom também é sobre um serial killer com uma câmera, do mesmo modo, devemos assumir que ele é muito menos sobre o serial killer do que sobre a câmera.

Lá, é tudo sobre assumir o voyeurismo natural de um filme, o prazer escópico que torna a câmera a maior arma do assassino. Algo que a obra faz de modo expositivo tão somente para poder dar vazão aos seus momentos mais potentes -- do uso do technicolor sofisticado de intuitos voyeuristas para com suas prostitutas até as sugestões que assimilam o serial killer a um diretor de cinema. Ou seja, todo o drama, o discurso, a essência, está no registro em si, no ato de filmar e seus desdobramentos. Do contrário, se, aqui, há uma atenção ao uso do slow motion, é mais sobre qual momento ele é utilizado (o estupro) e sobre quem o utiliza (o estuprador), não sobre o procedimento em si. Em suma, Peeping Tom é sobre as capacidades voyeuristas do cinema, enquanto Henry: Portrait of a Serial Killer é o próprio voyeurismo em estado bruto.

Novamente: mais um momento benéfico de testagem inadvertida. O surgimento inesperado do próprio dispositivo fílmico que é usado com grande potência e, mesmo assim, é descartado rapidamente, jogado no lixo partindo para sua próxima testagem.

A câmera quebrada: uma testagem que já se esgotou

Ao final, poderiam censurar meu texto, chamando-o de apático, isento ou condescendente, em relação ao filme. Aliás, como não condenar a obra que é pura exibição do abjeto?

Bem, para mim, realmente sua experiência se baseia tão somente nisto. Sequer poderia compara-la com um A Casa que Jack Construiu, que também possui um serial killer posto para ser uma figura unidimensional, um mal uno. Henry não é instrumento de uma ideia provocativa ou de qualquer outro discurso, ele está lá para ser uma imagem. Mesmo nos momentos em que o filme se aproxima de se aprofundar em algo, seu assassino sempre desemboca numa visão a ser registrada em vez de estudada. Na verdade, a única semelhança que se há com um "retrato" é a sua imagem plana. Tudo sobre o anticlímax do plano final, encerrando a obra da mesma maneira que se iniciou, sem aprendizados ou qualquer mínima mudança.

Entretanto, a diferença crucial é que creio haver uma grande disparidade entre filmar a abjeção e ser abjeto. Henry não é uma reportagem sensacionalista que vende exploração como informação. Henry não é uma imagem pornográfica que quer ser muleta de projeção mental do além-filme. Henry não é a filmagem fetichista de registro obcecado e simplório por seu objeto de prazer. Não. Henry é sobre o esticamento da criação fílmica, sobre as possibilidades de criar uma mácula. Pode até estar longe dos maiores nomes com mesmo intuito, mas, ainda assim, é a arte que estuda a si mesma para atingir seus objetivos.


Uma história plana

Comments


Post: Blog2_Post

Subscribe Form

Thanks for submitting!

©2020 por Cine 98. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page