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CRÍTICA: Filhos da Esperança (2006) - Alfonso Cuarón

  • Foto do escritor: Vítor Azevedo
    Vítor Azevedo
  • 5 de jul. de 2020
  • 5 min de leitura

Considerando todo o alarde que se faz em torno de seus planos-sequências, é uma grande surpresa constatar que Children of Men escolhe outras vias para sua hiperestilização. Infelizmente, surpresa puramente negativa, pois se Cuarón atinge qualquer singularidade no modo de filmar, a totalidade de sua idiossincrasia deve ser usada tão somente como contra-exemplo. É tudo sobre transformar formalismo em mea culpa para, em seguida, vomitar interpretações e significados grosseiros.

Basicamente, se assemelha a um texto qualquer de um Livro de Horas. Começa com um hiperadorno em sua letra inicial para, depois, se concentrar na profundidade dos salmos e orações. Analogia que talvez nem seja muito justa com os artistas cristãos, pois, mesmo nesse coágulo das iluminuras, elas jamais tiveram qualquer sentido de subterfúgio. Acredito que o mais justo seria comparar Cuarón com algum escritor barato, que se afunda num texto pobre de mil páginas e, ao final, tenta solucionar a barateza auto-indulgente com a capa dura mais lustrosa e chamativa possível. Para ele, duas artes diferentes: a da forma e a do conteúdo. O momento do acessório e o momento da mensagem.



Uma página de um Livro de Horas

Sua hipótese absurda é a de que ao optar por trabalhar com extremos ele não precisa lidar com a conciliação de elementos, com uma dialética própria, com a unidade artística. Ou seja, basta dividir o filme em dois: o tecnicismo — para encher os olhos dos tarados pelo exibicionismo — e a hiperdescrição — para encher os olhos dos tarados pela verossimilhança.

Temos todo um primeiro ato que exemplifica bem quando se segue essa noção à risca, os piores momentos da obra. O que aparece quando se estrutura sequência por sequência, imagem por imagem em pura informação introdutória, fetiche com a construção da própria distopia, que, as vezes é entreposta por alguma coreografia exuberante isolada. Sobre iniciar numa série de apresentações de seu universo — começando com a notícia de TV, sobre a morte do garoto mais jovem de seu mundo, que não basta como síntese, tem que ser exposta pelos personagens, exemplificada pelas imagens e repetida com inúmeras dramatizações para se mostrar sua importância — e "suprir" essa miríade de pura informação com a "destreza" do plano-sequência que estiliza uma explosão.

Não que haja algum problema em ter uma experiência com uma carga pesada de informações. Em Elemento de Um Crime, por exemplo, Lars Von Trier possui uma distopia de trama bem mais confusa e de formalismo bem mais exagerado (é uma obra filmada inteiramente numa cor cobre), a questão é que todos seus excessos se combinam, criam algo, todo um sentimento de desgaste e demência. Assim, o mal só surge quando se decide que esses momentos descritivos virem apenas isso: descrição. Isto posto, quando vemos Clive Owen expressar sua incredulidade sobre o tal "Projeto Humano" e, em seguida, Michael Caine soltar uma piadinha sobre os governos internacionais, não há nem drama nem gag, fica explícito que — como tudo até então — são apenas pretextos para mais apresentações.



Elemento de Um Crime (1984)

O que acontece em peso num momento inicial, mas depois, continua na mesma tônica, a despeito da frequência menor, quando opta por substituir apresentações por pretensas mensagens e metáforas que sucedem momentos vergonhosos. Como o rádio tentando dissimular seu comentário social mais que direto ao nos contar como 2003 (a mesma década do filme) era “um belo tempo em que as pessoas se recusavam a aceitar que o futuro estava logo ali na esquina”. Tudo sobre negar o sensorial em prol de um ansioso e desenfreado "aprofundamento" descritivo-interpretativo que, em tese falsa, poderá respaldar-se nos momentos individuais de virtuosismo da câmera.

Daí, a única coisa que salva Cuarón da completa abjeção é que seu esquema sempre esteve errado. A maior das hipertrofias formais ainda sim implica num conteúdo e vice-versa, pois o básico sobre a arte é que essa total distinção forma-conteúdo só ocorre numa seara conceitual. Afinal, a exclusão do campo formal é simplesmente impossível, ela nunca foi mero “acessório”, pelo contrário, é aquilo que alavancará ou não a experiência. Logo, apesar do diretor demonstrar o oposto, sua estética naturalmente vai produzindo novas relações de “forma e conteúdo”. Mesmo assim, é um esforço enxergar qualquer decorrência positiva por aqui, elas surgem pelas beiradas e vão embora rapidamente.

É verdade, em vez de achar a "unidade estilística" dos planos, o mais correto seria achar a "constância", pois há uma maneira quase automática de realiza-los. O diretor tenta ficar entre uma total plasticidade/moldura da aparência e uma total presenciação/observação agitada, mas ele faz isso longe de qualquer complexidade, tudo se resume na repetição da câmera tremidinha e suja. Concebe todo um retraimento da decupagem (na mesma descendência plástica avassaladora do Orson Welles) — continua tendo planos detalhes, primeiros planos, dentre outros, filmando tudo no mesmo plano, sem cortes —, mas disfarça essa intenção com sua rusticidade artificial.



A decupagem retrátil da movimentação de Welles

Entretanto, apesar do simplismo, realmente creio estar aí sua melhor qualidade. Ela surge nos rápidos momentos de entretempo vistos sob esse modus operandi de seus planos-sequências, pois, apesar da artificialidade, é esse equilíbrio de plástico (entre a presenciação e a estilização) que consegue vislumbrar uns momentos de natural pausa do tempo, de inconstância da agitação construída. Como o entretempo da ação do terrorista que, depois de apontar a arma para Theon e antes de ser jogado pra longe por ele, olha pra trás e pergunta "posso atirar?". Normalmente, estranhezas que acontecem nesse momento quase fatal. Uma manipulação de ansiedade confeccionada pelo diretor, mas que ganha novos ares de estranheza devido esse quase equilíbrio da câmera.

O melhor elemento e que, infelizmente, só me soa como involuntariedade subaproveitada, porque se a hipertrofia formal origina isso, a hipertrofia das significações só leva suas formas ladeira abaixo. A grosseria em níveis máximos que prossegue nessa mesma "sutileza" da frase do rádio citada. A sacralização da jovem grávida apresentada entre bezerros, um quadro moldado como se fosse alguma pintura digna de um Picasso que ele tanto mostra. Imagem rude realizada em prol da "mensagem importante", porque, aqui, não interessa os bezerros ou a atriz filmada, para o cineasta, a finalidade está nessa interpretação monumental.



Sacra abjeção

Em certa cena, há uma piadinha sobre Kee alegorizar a figura da Virgem Maria, um primeiro momento de sugestão e, em seguida, a própria paródia dessa possibilidade. Quer dizer, isso é o que eu acharia caso visse a cena de forma completamente isolada, pois, considerando todas as outras mil aberrações postas como metáforas — do barco da salvação chamado "amanhã" ao "Projeto Humano" posto insistentemente como uma questão de fé — essa cena me soa ridiculamente infantil. Aqui, Cuarón é a criança que joga verde, conta uma ideia em tom jocoso, envergonhada de afirmar seu pensamento, mas, por trás do verniz, espera que alguém goste dela e a considere seriamente, pois aí sim ele assumirá sua "genialidade".

Aqui, Cuarón não se deu conta que um filme só possui potência através da integração de todos seus elementos.

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