CRÍTICA: Banquete de Sangue (1963) - Herschell Gordon Lewis
- Vítor Azevedo
- 14 de ago. de 2020
- 4 min de leitura
Imagens de Nulidade
Habitualmente, defendo filmes amorais ou, "pior ainda", filmes imorais.
Nada mais que uma urgência minha, de pregar a palavra mordaz do escritor de Nunca Aposte a Cabeça com o Diabo, uma história de Edgar Allan Poe. Um conto sobre o conto, sobre um autor que ao ser condenado pela ausência moral de suas obras decide escrever a tal moral em letras garrafais (o próprio título) para, assim, concretizar a tão requerida “parábola” através do maior dos sadismos. Uma conclusão que Poe chegou no “ultrapassado” século XIX e que, aparentemente, ainda não foi trazida para o novo milênio, visto que só louvam Wes Craven por seus filmes “falarem" do conflito propriedade x comunidade.
Diante disso, Banquete de Sangue talvez seja o filme perfeito, para mim mesmo, a fim de aprofundar o assunto. E, na verdade, não por ele ser bom, pelo contrário, justamente por ser horrível. Vejo necessidade em critica-lo como prova de que a discussão sobre a potência de um filme pertence a um espectro muito mais prolífico e profundo do que o da guilhotina moral — uma pena, enquanto na década de 50 a “moral fílmica” era motivo de um extenso debate estético, hoje, ela virou utilitarismo simplório: basta decifrar a temática do filme através da sinopse para saber se ele será bom.
Daí minha necessidade de abolir dicotomias, porque assim como a vontade ignóbil de um filme — seja qual for — pouco interessa, ao mesmo tempo, o filme que pouco importará caso ele seja tão somente isso: vontade ignóbil. Ou seja, Banquete de Sangue em pessoa.

Basicamente, o filme está num mesmo posto de Bava, entre o passado de Hitchcock e o futuro dos slashers, mas usufruindo dessa posição da pior forma possível. Se seu autor vislumbrou uma fresta nas imagens, uma possibilidade de confeccionar prazeres abjetos e apelativos, sua pressa de filma-las foi tanta que ele o fez antes conhecer seu próprio mecanismo artístico. O que, em muitos outros casos de muitos outros exploitations, ainda se transformaria numa motivação riquíssima, mas que, aqui, se configura como uma ânsia mal manifestada, tão afásica que sequer poderia ser chamada de autoindulgente.
Uma ânsia que, certamente, advém tanto de seu famoso gore quanto de sua sexualização explícita. Basta ver como sua herança direta de Psicose — o primeiro assassinato ocorrido numa banheira — não está lá por qualquer motivo oculto ou intrincado, só está lá para que a câmera confesse seus desejos, realizando um movimento de “escanear o cadáver” apenas para se fixar nos seios da atriz. Simples, se com Hitchcock, muito posteriormente, questionariam como o olhar era predominantemente masculinizado, como a decupagem que constrói a ação/a história/o evento escondia um olhar fetichista, com Herschell Gordon Lewis o fetiche é tão direto que ele imediatamente elimina tudo aquilo que ele considera um empecilho, incluindo aqui, a própria feitura da imagem.

É o tipo de filme que suscita aquela diversão casual de assistir à obra com amigos, pausando para comentar “olha como as atuações são toscas”, “olha como os cenários são iguais”, “olha como àquilo é falso”. Uma atitude que em muito eu abomino, mas que, ao menos aqui, o filme incita quase que instantaneamente nos primeiros segundos de qualquer cena. Entretanto, ao contrário do que dizem, isto não ocorre porque “o orçamente é baixo” ou porque “a atuação é fake”. Na verdade, é tudo por conta de sua vontade desajeitada e simplória que faz com que qualquer imagem que não contenha sexo ou sangue rasteje pelas bordas.
E, apesar de eu concordar com essa redundância dos cenários, é bem superficial colocar a culpa das locações (como o escritório da polícia) soarem extremamente repetitivas num “baixo orçamento”, seria um descaso com grandes diretores que já fizeram bem mais com muito menos. É muitíssimo pior. Tudo se concentra no diretor incapaz de decupar/cobrir o local de uma maneira minimamente decente. Assim como seus atores são engrenagens “funcionais” — berrantes tão somente por falta de coordenação e intenção de seu autor —, todos pertencentes da mesma inércia de fazer com que a história se mova aos trancos e barrancos, a câmera se assemelha a um monólito preguiçoso que olha para suas locações de modo idêntico (o mais fácil), mas que, ao mesmo tempo, faz questão de se mexer, cortar e se agitar antes que qualquer ousadia possa surgir. Afinal, seu intento é esperar por ali até que surja, por fim, algum seio ou alguma víscera.
Não se explora o espaço em prol de qualquer coisa, ou melhor, não se explora nada: seja um drama, uma atmosfera, um capricho, etc. Não. É bem contraditório, pois nem seus próprios interesses são explorados, o que faz com que até suas pouquíssimas qualidades sejam suprimidas. Ademais, se seus órgãos falsos e seu sangue guache possuem uma certa idiossincrasia, até isso acaba sendo vítima de impotência, quando, por exemplo, no primeiro assassinato, o diretor não dispara o cadáver de uma vez na tela como a primeira imagem de violência, intermedeia a estreia com elipses toscas de uma faca ensanguentada ou do crime visto pelas costas — o mesmo poderia se dizer da palestra sobre Ishtar, quando a parede extravagante, pintada inteira de vermelho, é subaproveitada, usada de mero contraplano. Toda uma aleatoriedade provinda de uma inabilidade artística.

Ao final, para o espanto de muitos, as imagens efêmeras e impotentes de Banquete de Sangue se assemelham bastante às imagens de filmes que escapam da guilhotina moral. A ineficiência do olhar de Lewis não está tão distante da ineficiência de um Trabalhar Cansa — que subjuga tudo em prol de “alegoria” — ou de um Estrelas Além do Tempo — que subjuga tudo em prol de frases de efeito. Seja um pervertido ou um bom samaritano, o diagnóstico é o mesmo. É tudo sobre um desleixo, uma ânsia tão grande de olhar o que se considera importante que o próprio olhar em si é esquecido. Imagens de nulidade.
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