CRÍTICA: A Garota que Conquistou o Tempo (2006) - Mamoru Hosoda
- Vítor Azevedo
- 28 de ago. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 26 de set. de 2020
Linhas que saltam no tempo
Parece fácil afirmar que a ficção científica cinematográfica, num imaginário coletivo das últimas décadas, está muito atrelada à grandiosidade (gráfica, discursiva, substancial, etc). Ora, não nos enganemos, para além das naves espaciais e criaturas de CGI que geram franquias, mesmo nos casos mais "humildes" ainda há um flerte com o monumental. Se em De Volta para o Futuro a viagem no tempo parece um subterfúgio para construir e reconstruir uma época, em Feitiço do Tempo — um caso em que todo o mecanismo científico-fantástico se concentra numa única persona — o looping é trampolim para a jornada em que se atinge o Nirvana. Disso, são dois degraus para se concluir que até na ficção científica das obras de menor orçamento — principalmente aquelas que falam do tempo, como em Crimes Temporais ou Coerência — se faz a mesmíssima coisa. O mesmo peso do mundo, porém, confeccionado pelas elipses que jogam para o além-tela sua seríssima "consequência temporal".
Dito tudo isso, parece igualmente fácil denotar que em A Garota que Conquistou o Tempo esse tal monumentalismo é ausente e, justamente, nisso, reside sua melhor qualidade. Todavia, ao contrário do que o olhar superficial poderia conjecturar, o coração de sua simplicidade não reside na trama cotidiana, ele surge antes das coisas serem formadas, ou melhor, no próprio ato de formação das coisas: seus traços.

Na verdade, ao contrário do que eu possa ter sugerido, essa não é uma história nem um pouco inovadora. Ela advém de uma novel que já fora adaptada diversas vezes no Japão — se limitando ao cinema, essa mesma história foi recontada 5 vezes, contendo mais um filme posterior à obra de Hosoda, em 2010. Basicamente, ela se resume em usar do artifício de viagem no tempo como hipérbole do coming of age, enclausurar, o quanto for possível, toda aquela "gravidade universal de se mexer com o tempo" num cotidiano escolar. Daí, a trama não é sobre o efeito borboleta, mas sobre a importância das decisões naquele próprio microcosmo feminino. O que é muito pouco para podermos considerar qualquer benesse, porém, a diferença aqui é como toda a experiência parece ter conquistado uma nova singularidade pelo simples fato de ser uma animação.
Assim como o início do filme é uma súmula do porvir fantástico da história, essa primeira cena, também é o suficiente para deflagrar a súmula do porvir da experiência. Ali mesmo, quando a protagonista é apresentada jogando baseball com dois amigos, reside o que há de mais único e o que há de mais banal na obra.
À primeira vista, tudo parece ser sobre a eclosão da ficção, o fantástico à espreita de seus alarmantes números vermelhos que truncam a cena ou do inusitado despertador que cai do céu. Entretanto, se são essas "pontualidades mágicas" que chamam à atenção, elas só estão lá para atrapalhar um pouco aquilo que há de mais interessante e nos foge por já surgir como uma singeleza orgânica, algo já imanente ao filme. Isso é, a própria desenvoltura dos traços que sequer formam rostos para os garotos, neste primeiro momento, e que confecciona um rebatimento da bola com agilidade própria. Ou seja, sua potência não surge pelo simples fato de ser uma animação. Não. Ela se exprime graças à especificidade de seus desenhos, uma determinada autenticidade que assume o inacabamento de seus traços soltos e pouco definidos. Ademais, se suas imagens 3D berrantes de "túneis do tempo" são soluções grotescas e comuns para se lidar com a temática temporal, o mesmo não pode ser dito quando o tal salto (no tempo) é levado de modo literal e se manifesta pela própria cinética das linhas pulantes que dão forma à protagonista. Se um despertador que cai do céu nos salta aos olhos, deveríamos prestar mais atenção aos poucos segundos do braço 2D que lança a bola.
É um estilo de animação que, infelizmente, não parece encontrar muita compressão, a despeito de um grande público brasileiro aficionado por animações orientais. A cinética de Mamoru Hosoda, certamente, está nos antípodas da relojoalheria de um Miyazaki que costuma ser aclamado por sua grama desenhada se mover milimetricamente de acordo com o vento de seu universo. Todavia, mesmo não pertencendo a seara da sofisticação explícita de um estúdio Ghibli, seria absurdo encaixa-lo num “outro lado”, aquele que engloba o trabalho porco e industrial de qualquer anime seriado, onde se nega toda uma base artística (a decupagem, o estilo, a organicidade...) em prol de elipses-muletas que barateiem todo o processo de movimentação.
Para ser justo, aqui, as imagens estão mais próximas das de um Neon Genesis Evangelion. Uma configuração desavergonhada das linhas e frames a fim de evocar sua própria autenticidade, sua própria experiência. Óbvio, anos-luz de Hosoda se aproximar da ousadia do anime que usou o esboço de um episódio como conclusão para a série inteira, mas, ainda assim, é através da maleabilidade das cambalhotas de Makoto, dos corpos arremessados como papel ou dos degraus velozes pelos quais a protagonista corre, que todo esse espaço-tempo consegue ser verdadeiramente esgarçado. Aqui, esse organismo estranho à cultura oriental, a tal “obrigação figurativista”, já foi enterrada há tempos, assim como nunca deveria ter sido invocada.


Claro, como mencionei, esse tratamento singular nem sempre aparece no seu potencial máximo. Sempre nos deparamos com uma imagem que se avizinha daquele tal monumentalismo da ficção científica, se distanciando de sua leveza integral. Poderíamos, por exemplo, citar, como sinônimo da primeira cena, os planos em que Makoto e Chiaki deixam Kosuke na rua bifurcada. Lá, há tanto o plano bandeiroso da própria placa da bifurcação, quanto um frame congelado por alguns segundos, nessa mesma soltura do estilo. Ambos cobrem a temática temporal/moral que ronda a narrativa, entretanto, é a pura elasticidade dos traços que retoma a este mundo, paradoxalmente definitivo e volátil ao mesmo tempo, de modo muito mais interessante.
Assim sendo, por quê, então, haveria uma necessidade de, de repente, clamar, ao menos um pouco, pelo monumentalismo negado até então? Confeccionar uma cidade inteira congelada, na paralisia temporal, se o simples acidente de trem, com corpos arremessados da bicicleta, já atestava o risco em torno às viagens temporais?
Bem, de alguma forma, para alguns autores, parece existir uma vontade inescapável de dar à luz ao impossível através das capacidades da ficção (científica). Uma tentação ou vício que irrompe pelo percebimento de suas próprias possibilidades demiúrgicas. Entretanto, mesmo na debilidade de seus descontroles, ainda há certa resistência, esta que, por sua vez, se não é admirável, pelo menos evita que seu autor naufrague a experiência.
Basta ver como, na primeira adaptação da novel para o cinema — um drama apático dirigido pelo conhecido autor de Hausu —, quando Obayashi (o tal diretor), por fim, encontra o plot twist futurístico, ele explica tudo numa transformação incoerente das imagens que passam a fazer as mil trucagens conhecidas do cineasta. Tudo se encerra numa miríade de inesperadas explosões imagéticas possibilitadas pela insurreição da viagem no tempo. Por outro lado, com Hosoda, apesar da história incorporar, até mesmo, mais elementos de ficção científica (em tese, a trama seria uma espécie de continuação da novel, com a tia de Makoto referenciando a protagonista original), ele escolhe transformar suas explicações em conteúdo enigmático. Por mais que seja uma barateza de usar da vaguidão como pretensa finalidade (o mistério do quadro, a frase de resolução do casal ou qualquer motivação circundante ao plot twist), ao menos, ele expulsa qualquer possibilidade de chafurdar num “monumentalismo extraordinário” já muito comum.
É como a última solução de salto no tempo para a protagonista: a lógica do mecanismo é descartada em prol do puro acontecimento, do próprio salto e da literalidade das ações em tela. Não poderia ser melhor, pois, por este lado, seus defeitos são aprisionados na superfície. A pobre extravagância do 3D é efêmera, enquanto a pretensa complexidade fictícia é desinteressada.


A Garota que Conquistou o Tempo está longe de ser um exemplar de seu estilo, país ou temática, contudo, a obra possui linhas libertadoras diante de um mundo que parece querer engessar, cada vez mais, as infinitas possibilidades da animação japonesa. Afinal, um colírio.
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