top of page

CRÍTICA: A Canção da Vitória (1942) - Michael Curtiz

  • Foto do escritor: Vítor Azevedo
    Vítor Azevedo
  • 13 de jul. de 2020
  • 5 min de leitura

Propaganda nacionalista de 2 horas? Bem, provavelmente, essa é a característica mais unívoca da obra e se há qualquer espaço pra se duvidar disso — mesmo com a proclamação "Yankee" estampada no título —, o Cagney que afirma a derrota dos japoneses e de Hitler, olhando diretamente pra câmera, já deve ser o suficiente para confirmar a tal propaganda. O que, até então, não siginifca algo nem bom, nem ruim. Tudo depende da maneira que suas formas concretizam qualquer intenção através da integralidade da experiência. E, diante disto, Michael Curtiz encontra duas formas de realizar esse panfleto. Na primeira, se carrega todos adjetivos pejorativos que estigmatizam qualquer panfletagem. Na segunda, um jogo complexo que dá peso pro discurso Yankee. O que não ocorre em momentos separados, ocorre ao mesmo tempo.



Alguns dos últimos diálogos do filme funcionam como uma síntese mais do que precisa sobre essa dualidade que cito: a cena em que Cohan ganha sua congressional gold medal. Ali, há tanto o famoso "em que outro lugar do mundo um cara normal como eu pode chegar e bater um papo com o presidente?", como o "'Over There' foi tão poderoso quanto qualquer canhão", ou seja, a jornada dramática fácil junto da exploração do poder do espetáculo. Dois elementos interdependentes, mas ainda sim em desequilíbrio. A fragilidade ao lado da potência.

Para nos ater aos momentos áureos da encenação de Curtiz devemos, primeiramente, nos ater ao que Orson Welles disse certa vez, dissertando a respeito das estrelas de cinema e sua popularidade. Sobre como, no início do século XX, a epifania oriunda da fama se concentrava nos palcos teatrais para só então, depois da primeira guerra mundial, ela migrar para o conhecido star system hollywoodiano. Diante de tal elucidação, sequer precisamos olhar para a cena em que o protagonista se surprende pelos "novos jovens" só conhecerem musicais caso estes forem os de cinema, basta as palavras de Welles para podermos encontrar o melhor elemento do filme: o canibalismo do autor, Hollywood engolindo a Broadway.

Uma relação de conflito que já se apresenta pela sua figura principal: Cohan e Cagney, o palco e a tela, o velho e o novo. O que, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, definitivamente, não sucede em tom apaziguador, pelo contrário, existe um sorriso sardônico escondido. Não há dúvida de que tudo aquilo se trata dos espetáculos de Cohan, assim como também não há dúvida de que esses shows ocorrem nos palcos, porém, o que não é tão explícito é que esses números só ganham potência num olhar móvel e retangular. É a câmera do diretor que dinamiza ao máximo cada sapateado, inaugura o "teatro do close-up" e ainda busca imagens impossíveis — como filmar de dentro pra fora, num ângulo diametralmente oposto a construção do palco teatral que, ainda por cima, está num over the shoulder — sem nunca atentar contra a ilusão de que tudo é um "número teatral". Uma homenagem a outra arte que só é realizada através de uma apropriação primária.

Tudo porque sempre se contaminou cada pequena parte da ribalta, nunca se aceitou a limitação daquele proscênio. Se normalmente no teatro basta olhar ao longe para enxergar o começo e o fim do seu cosmos visível, aqui, desde o jovem George, esse palco faz parte de uma lógica maior, de inúmeras visões fragmentadas com escalas e dimensões elásticas. Daí, se, na cena em que Josie conta sobre seu noivo para o irmão, não há qualquer estranheza por presenciarmos o fundo "do mundo real" sendo idêntico ao fundo falso do teatro é porque tudo sempre foi visto sob uma mesma lente. Só há um universo, um espetáculo: o cinematográfico.

O over the shoulder dentro do palco e o fundo falso do "mundo afora". O mesmo universo: o cinematográfico.

Isto posto, podemos concluir que para cada cena de dança e cantoria há sempre um catalisador desse extraordinário musical — um plano de vertigem tripla como a simultaneidade de certa parte de "45 Minutes From Broadway", em que as dançarinas andam para os lados, a cortina vai pra cima e a câmera para trás, explica bem essa potência — como também uma abertura para o além proscênio. Os ornamentos de papelão, das bordas do palco, não servem de extremidade, na verdade, eles indicam uma grande contiguidade: o cosmos que suporta a vida de George M. Cohan.

Dá pra entender melhor essa outra característica, o palco centrífugo de expansão dramática, nessa mesma sequência citada. Quando Fay Templeton é a protagonista do número e há alguns planos bem simbólicos em que a atriz pronuncia o "Mary" de sua canção enquanto olha para cima. Ela canta mirando na Mary original, inspiração da música, um extra-diegético teatral, mas que, certamente, faz parte da diegese cinematográfica. Logo, revela-se o outro ponto nevrálgico da encenação de Curtiz, realizar cada número musical de bandeiras e chapéus Yankees não apenas com a potência efervescente desse novo espetáculo, mas sob o signo do drama desse homem. Vislumbrar os sapateados como parte de um contexto "monumental": a jornada dramática do protagonista. A tal fragilidade interdepente desse espetáculo, que citei anteriormente.

Uma grande ponte para esse aproveitamento panfletário: o drama do Yankee número 1. O que não é algo necessariamente ruim por si só. O todo apoia sua experiência na ilusão, no espetáculo e no drama, mas ao se tratar do último que a obra decai.

É como a única cena de provável conflito entre o casal principal — quando Cagney tem que assumir à sua cônjuge que deu a música endereçada à ela para uma atriz famosa e, ao final, a Mary original aceita de bom grado, dizendo que seu dever é exclusivamente cuidar do marido — que possui um desfecho bem inconclusivo ou ao menos morno demais, graças a sua resolução facílima. E não digo por qualquer estupidez que decorre numa imposição ética e utilitarista (se fosse o caso, já começaria "problematizando" sua premissa ou posição ideológica, como fazem os novos "críticos" de cinema). Não. Acontece que todo e qualquer mínimo indício de conflito é resolvido da mesma maneira fajuta.

Curtiz quer nomear o drama como bastião dos espetáculos, angariar profundidade para a experiência que representa "uma vida", mas ele decide fazer isso do modo mais fácil possível. Seja o flerte com um arco de arrogância, o sacrifício pela família ou até um leito de morte, tudo é resolvido com um ar de otimismo barato e aproveitador. Ele só se concentra nas lágrimas caso estas simbolizem a felicidade, só se concentra na morte se ela traz um fechamento belo. Basicamente, oculta-se o ônus para superfaturar o bônus.

É bem diferente do que grandes diretores otimistas fizeram. Renoir, por exemplo, nos 40 minutos de Um Dia No Campo lida com a parte melancólica da vida, dos relacionamentos e da juventude, sem precisar negar o macro de seu olhar positivo. Ele encaixa o amargor no seu cosmos, considera a tristeza como pertencente de um evento maior: a natureza (que continua bela mesmo num dia chuvoso). Do contrário, Curtiz foge de qualquer amargor possível, finge que a gag ou a ternura efêmera são suficientes para amarrar o drama de uma vida ou, ainda, apenas segue para o próximo musical lidando só com o que lhe convém.

O rio chuvoso de Jean Renoir

Não haveria problema se o filme designasse como pretexto seu viés biográfico para apenas se concentrar em todas suas cenas extraordinárias. Claro, talvez isso fosse impensável para uma produção que urge como homenagem a seu artista estadunidense, porém, lidar com essa tentativa dramática através de resoluções convenientes ou negligentes — para não dizer aproveitadoras —, apenas decorre em precariedade. Pior ainda, acaba por desembocar num sentimento de subterfúgio involuntário. Uma história de carreira transformada em grosseria que, mesmo com os bons momentos de Cagney, autodeflagra sua falsa profundidade, torna nítido como só se narra seguimentos agradáveis de sua vida, uma coesão simplória para poder se chamar de "biografia".


Assim, através da encenação ilusório-espetacular que esse panfleto nacionalista ganha força, por outro lado, na tentativa de usar o semblante de Geoge M. Cohan como bastião de seus ideais que Yankee Doodle Dandy se torna medíocre. Uma intertextualidade teatral singular ao lado de um drama biográfico fraco.


A força do panfleto através da potência do espetáculo

Commentaires


Post: Blog2_Post

Subscribe Form

Thanks for submitting!

©2020 por Cine 98. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page